terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O velho na estrada do sul

O velho no fim da vida
olha sua molhada terra.
A chuva fina, suas nuas pernas,
orvalho em seus grisalhos fios

Quanta há de memória nesse velho?
Seus olhos semi-fechados, molham.
É a chuva? Lembranças, lembranças,
sua terra molhada, seu cachorro.

Rompe o silêncio eterno. Um ronco.
Um carro, ou o que sobrou deste
com o peso do tempo. Crianças.

O velho desperta do sonho,
tudo recomeça, devagar e simples.
A vida tem, sim, sentido.

(18/10/08)

Janela

E da janela vejo a praça tranqüila
Minhas idéias atravessam o vidro
Caem na rua, no trânsito, na vida,
nas mãos dessas crianças maltrapilhas.

Histórias que pouco interessam.
Janela me separa da realidade
Do sopro de vida, da desigualdade
Nos faróis, param, nas calçadas...passam!

Ricos e pobres, juntos e alheios ...
Mesma praça, passo, pressa paulistana
Os olhares, cabeças e meneios

Indiferentes e todos à paisana.
Sob a garoa, seus devaneios
Janelas são olhos para a verdade.

Canhestros Escritos Insones

Noite. Noite que não passa
Fome.Fome de tudo e de nada
Passos, na escada e pela casa.
Sonhos, na varanda e na sacada.

Barulhos noturnos insetos
Devaneios, com gelo, destilados.
Insônias, escritos secretos...
Neurastênico, deitado de lado.

Sofá companheiro estofado
TV programação do diabo
Saída remédios proibidos

Um prato talheres de prata
Meus livros embaixo caídos
Formigas amigas ingratas.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Se essa rua ainda fosse minha


Minha rua tinha amores
Adolescentes, aos montes
Quantas dúvidas, escolhas
Vinho tinto, muitas flores

Quem não flertou no escuro
Quem, da vida, fugiu soturno,
Quem não beijou no muro
Não viu. Morreu! Viveu noturno.

Salvo engano vejo beijos
Muito raros em minha rua
Não os quero nem almejo

Só queria a luz da lua.
Minha rua agora é tua
Dona Saudade Memória de Zejo.



quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A seguir, cenas do próximo capítulo

Já era tarde quando entrou no pequeno barraco de madeira, escuro e com um cheiro que, naquela noite, lembrava aos odores de um velho cemitério. Percebeu que embora tivesse instalado luz elétrica em sua moradia, as sombras moviam-se incessantes nas paredes devidos às velas acesas em pontos estratégicos. Benzeu-se, quando olhou que havia duas chamas queimando ao lado da pequena imagem de São Jorge, e mesmo tendo ficado muito preocupado com a possibilidade de um incêndio, lembrou que não deveria apagá-las.
Empurrou os sapatos para um canto qualquer e chamou por Maria, duas vezes, até perceber-se sozinho, e antes mesmo de poder queixar-se da ausência da esposa, viu a figura de sua mulher sentada, inerte, escondida e rindo baixinho, com as mãos na boca tentando quebrar o gelo do cotidiano maçante, com aquela demonstração de brincadeira infantil.
Riu também e caminhou em sua direção, abraçou-a e beijaram-se. Ela dizia ter preparado uma surpresa digna de novela das oito.
Maria não se furtava a tentar agradar o marido. Depois do desemprego, recuperação do alcoolismo, e morte da mãe, ele tentava resgatar o que lhe “sobrava daquela festa” - como costumava dizer - trabalhando dia e noite na cooperativa de reciclagem. Maria nunca o abandonaria. Foi seu primeiro namorado e, desde muito cedo, viviam juntos, sem filhos.
Tinha, ela, guardado suas economias durante algum tempo planejando aquele dia. Pensou em tudo e gostaria que sua noite fosse igual à que tinha visto na novela, na véspera. Programou tudo para ter uma noite agradável com seu príncipe. Cronometrada. Logo começaria o último capítulo da trama que se alongava e gerava expectativa entre os telespectadores.
Não tinha uma Jaccuzzi, nem mesmo uma casa que comportasse um banheiro como o da protagonista de seu folhetim preferido. Aliás, o barraco em que viviam atualmente era menor que o quartinho da empregada, negra como ela, que fazia aquele papel mais uma vez na televisão.
Por um instante Maria pensou porque que toda família rica das novelas daquele canal tinham empregadas hora negras, hora nordestinas. Que coincidência. Lembrou ainda de uma última, que passara recentemente onde a família, riquíssima, que era a principal da trama televisiva, era também negra. Ficou feliz por um instante, pois o preconceito que ela achava existir em seus programas preferidos era invenção de sua cabeça. Orgulhava-se muito de sua cor.
Pediu ao marido que a aguardasse na cama, pois tomaria um banho e logo o procuraria. Parou sobre o giro incompleto dos calcanhares em direção ao cubículo que usavam para se banhar. Lembrou que a tal família rica, negra, protagonista da novela, que não passa nunca as oito horas, era composta por um político corrupto, uma filha psicótica capaz das piores ações e ainda tinha o seu irmão, eternamente bêbado e que só melhorou de vida quando se casou com uma mulher branca. Porque tinham colocado uma família negra?
Suspirou, envergonhada por nunca ter atentado para isso. Apagou as velas. Pensou mais uma vez no orgulho que sentia de sua cor e que não podia fazer parte, daquela visão estereotipada, medonha, criminosa e preconceituosa que a televisão lhe colocava todos os dias porta adentro.
Não sabia o que fazer. Acendeu as luzes. Seu marido, deitado, sem nada entender. Caminhou até a cama. Olhou para o homem negro em sua cama, trabalhador, superando tantas mazelas e carregando no cheiro de seu suor a verdade e a vida real.
Fizeram amor até depois das nove, das dez... A televisão desligada no dia do tão esperado último capítulo...
Sua própria novela acabara de começar.